Por: Paulo Humaitá

É véspera de feriado estadual e me encontro nesse exato momento aguardando um voo no aeroporto de Congonhas. Quanta movimentação! Pessoas indo e vindo para todos os lugares do Brasil, muitas delas, aproveitando a ocasião para visitar a família que mora longe ou curtir um tempo livre em meio aos dias difíceis nos seus empregos. Estou em uma cafeteria e na mesa à minha frente está um homem que eu vi trabalhar durante toda minha vida: Liminha, famoso assistente de Sílvio Santos. Este último, também conhecido como exemplo de superação de vida através do seu trabalho. No caminho para o aeroporto, conversei com o taxista que disse estar à procura de um maior significado de vida, quer amar mais o próximo e servir melhor outras pessoas. Eu respondi que ele já o faz através do seu trabalho. “Seu” Igor é usado como intermediário para levar todas as pessoas aonde elas desejam ir. Complementei dizendo algo que já disse para muitos taxistas: nenhum outro cristão no mundo tem um campo missionário tão diversificado e acessível do que um taxista. Não importa o gênero, idade ou estilo. As pessoas conversam sobre seus problemas com os taxistas, há uma rara confiança intrínseca. Nenhum templo alcança tantas pessoas diferentes e ainda por cima em um mesmo dia. Além disso, como poderíamos desenvolver nossos trabalhos e projetos, bem como transitar por aí sem os taxistas numa cidade como São Paulo?

Assunto pincelado, vamos explorar mais o nosso tema central: trabalho. Para muitos, sinônimo de árduo esforço, algo que “dá trabalho” e exige suor e sacrifício. Estes, o enxergam como uma maldição pósQueda com base em Gênesis 3:17-19. Para outros, infelizmente talvez uma minoria, o trabalho é gratificante, proveitoso e dignifica o homem conforme diz o provérbio. Ora, não seria o trabalho mais honra do que desonra? E mais um privilégio do que um peso? E por que o homem trabalha? Voltemos para a Criação. Uma das diferenças do ser humano para os demais animais é o fato de que nós produzimos coisas que nenhum outro animal produz: música, pintura, dança, cinema, arquitetura e construções. E não poderia ser diferente, afinal, fomos criados à imagem e semelhança (Gn 1:27) de Deus. Sendo assim, somos seres criativos, criadores à semelhança do nosso Criador. Vemos, portanto, Deus trabalhando de uma forma incansável durante aqueles dias de Criação. Porém, vemos também o seu deleite, o prazer e alegria no trabalho. Durante todo esse processo as Escrituras dizem que, ao finalizar seu projeto para aquele dia: “E viu Deus que era bom” (Gn 1:10, 12, 18, 21, 25, 31). Ou seja, o próprio Deus trabalhou em toda a Criação e no seu relatório deixa claro que obteve plena satisfação com os resultados. Os deadlines foram cumpridos pontualmente, milestones foram atingidos com excelência e as Obras foram entregues no prazo correto e em perfeito estado de conservação! Portanto, trabalhamos porque somos feitos à semelhança de um Deus trabalhador. O sábio de Eclesiastes estava completamente desanimado por viver uma vida sem a presença de Deus. Mesmo assim, ele ainda conseguia ver algo positivo no trabalho, algo que o fizesse feliz. Em outras palavras, até mesmo um homem sem Deus reconhece o trabalho como estabelecido pelo próprio Criador: “vi também que isso vem da mão de Deus” (Ec 2:20, 24; 3:22). Podemos então afirmar que o trabalho para o cristão é uma dádiva, uma oportunidade de adoração pelo privilégio de trabalhar. Jesus também foi trabalhador, carpinteiro, valorizou aqueles que trabalhavam manualmente, assim como os pescadores. O próprio Deus trabalhou e trabalha em todo tempo (Is 64:4).

Quando olhamos para a vida de alguns personagens bíblicos como José, Daniel, Neemias e Ester, vemos claramente que Deus os colocou em posições estratégicas com altíssima autoridade e influência durante os reinados mais poderosos que já existiram em toda a História. Não podemos esquecer que Deus comanda toda a História e está à frente do rumo da humanidade e Ele faz isso através do seu povo escolhido. José foi o mais novo dentre seus irmãos, humilhado e vendido como escravo. Anos depois, se tornou governador do Egito. Daniel participou de uma espécie de programa trainee, onde aprendeu a cultura e valores de uma nova sociedade, neste caso a Babilônica. Depois de tudo que passou, inclusive de provar a firmeza da sua fé por diversas vezes, foi o conselheiro principal de muitos reis, tanto Babilônicos como Persas. Era o mais importante depois do rei. Neemias, copeiro, braço direito do rei, ousou liderar um grande projeto de reconstrução e mobilizar gerações por uma causa divina através do trabalho. Ester, chamada para ser rainha, intercedendo e influenciando as decisões do rei com liderança e ousadia as quais mudaram (ou garantiram) os rumos da história do povo judeu. O mais curioso é que nenhum dos personagens anteriores são mencionados como pastores dos templos, músicos, missionários ou mestres da Lei. Porém, foram todos usados por Deus no seu trabalho. Isso mesmo, e ainda no Antigo Testamento, provando de que todas essas estratégias (Business as Mission, fazedores de tendas, etc) não compõe uma descoberta recente, mas sim uma redescoberta em tempo de serem mais exploradas. Cada história reflete a ignorante perseverança dos cristãos em separar o sagrado do secular. Para o cristão, não deveria existir a ilusão do secular, uma vez que todas as áreas da sua vida devem ser sagradas e tudo deve ser feito para a glória de Deus (Cl 3:17). O trabalho para adoração a Deus não é somente aquele dentro do templo. O trabalho missionário não é somente quando você abandona sua carreira para ir morar no interior da África ou Oriente Médio. Particularmente, eu adoraria ter essa oportunidade um dia e reconheço que faltam pessoas dispostas a largar tudo e ir para o campo missionário. Mas também existem chamados missionários para etnias nãoalcançadas que estão aqui no Brasil, por exemplo executivos e políticos. São pessoas de estilo de vida peculiares, com linguagens e costumes particulares, que frequentam lugares específicos, que até se alimentam de forma diferente, e precisam ouvir o Evangelho de Cristo de uma forma exclusiva, através de seus pares cristãos com os quais se relacionam no âmbito do trabalho. Uma boa definição sobre o trabalho é dada por John Stott: “trabalho é o gasto de energia (manual, mental ou ambas) no serviço aos outros, que traz realização para o trabalhador, benefício para a comunidade e glória para Deus”. Para não dizer alto grau de irresponsabilidade por alterar uma frase de Stott, eu ousaria acrescentar a palavra “sustentável” na definição, adjetivando o “benefício” para a comunidade. Outro teólogo, Timothy Keller, também nos lembra da origem do latim da palavra vocare que significa ‘chamar’ e é a “raiz de nossa palavra vocação”. Timothy também enfatiza que “uma das esperanças para a nossa sociedade fragmentada é a redescoberta do conceito de que todo e qualquer trabalho humano não é simplesmente uma tarefa, mas um chamado”. O trabalho, por sua vez, foi tema essencial na Reforma Protestante de Lutero e Calvino. Eles acreditavam no trabalho como uma extensão da obra criadora de Deus para cuidar e desenvolver sua Criação, bem como “davam ênfase especial à dignidade de todo e qualquer trabalho, observando que Deus cuidava, alimentava, vestia, abrigava e sustentava a raça humana por meio do trabalho do ser humano”. Para quem menospreza o seu emprego, uma surpresa: Deus usa o seu trabalho para a manutenção e desenvolvimento da sua Criação, seja direta ou indiretamente. Ou seja, a sua vocação, aquilo que você sabe fazer de melhor, seus dons e talentos, habilidades, ferramentas e personalidade. Tudo isso que você é compõe um pacote vocacional estabelecido e determinado por Deus especialmente para a sua vida, que por alguma razão está no seu código genético. Existe uma missão a ser cumprida e é desejo de Deus que você explore e use essa vocação para glorificá-lo, ajudar o próximo, a comunidade e ver que o exercício da sua vocação é algo muito bom.

Como disse anteriormente, amanhã é feriado no estado de São Paulo e estou em viagem a trabalho para Curitiba, onde não é feriado. Portanto, vou literalmente matar um feriado para ter um dia a mais de trabalho. Pois é, deveria ser o contrário! Dessa forma, até mesmo uma autocrítica e autorreflexão de um workaholic nato, penso que não poderia escrever sobre a natureza divina do trabalho e sua importância no desenvolvimento do mundo através das nossas vidas sem pelo menos mencionar alguns riscos inerentes quando o mesmo se torna protagonista de toda a cena, enquanto deveria ser apenas um dos principais coadjuvantes. O trabalho pode se tornar um vício, muitas vezes na mesma proporção que uma droga ou prazeres sexuais, uma vez que ele também traz satisfação, realização e prazer. Quem não gosta de ser reconhecido por um bom trabalho? Não há nada de errado nisso, contudo que essa não seja a finalidade. O trabalho deve ser o meio e não o fim. Em uma breve reflexão, acredito que os cinco principais riscos na centralidade do trabalho na nossa vida podem ser:

  • Desequilíbrio. Embora o trabalho seja uma forma de adoração a Deus (laborare est orare), ele não pode ser o que move as nossas vidas. Tenho colegas que, após passar por um programa de trainee, por exemplo, começaram a respirar trabalho e amar a instituição que os emprega de forma perigosa e sacrificial como se nada fosse mais importante, encarando o trabalho como uma missão de vida e não uma forma de cumprir uma missão através dele. John Stott enfatiza essa questão dizendo que “quando a vida humana é centrada no trabalho e não na adoração, perdemos uma parte essencial do nosso chamado humano”.
  • Vaidade. Facilmente identificado em conferências técnicas, profissionais, educacionais e muitas vezes ministeriais, o risco da vaidade pode cegar o coração do homem e levá-lo a uma busca pelo poder, pelo ter ou pelo ser. O trabalho se torna um fundamento do ciclo vicioso onde o conhecimento é soberano e existe uma importância exagerada por títulos e conquistas alcançadas.
  • Soberba. Nunca podemos esquecer que o Reino de Deus tem uma agenda diferente do reinado de instituições humanas. Os sistemas corporativos de recompensa por metas – meritocracia – refletem a forma humana de reconhecimento. Contudo, na parábola dos trabalhadores na vinha (Mt 20:1-16) Jesus nos ensina algo surpreendente: nem sempre aqueles que trabalham mais horas e geram mais resultados serão recompensados de forma proporcional. Não podemos nos esquecer que o nosso trabalho é o reflexo do exercício de uma vocação dada por Deus para nós. Portanto, podemos trabalhar arduamente, mas é Ele quem realmente faz todas as coisas cooperarem (Rm 8:28). O trabalho não pode substituir a fé que, por sua vez, deve estar sempre centrada naquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que pensamos, imaginamos ou trabalhamos por nós mesmos (Ef 3:20).
  • Arrogância. Conforme acumulamos experiência e conhecimento, somos apresentados a alguns atalhos, pegamos o jeito daquilo que fazemos e tendemos a ignorar o novo. Uma postura de humildade é necessária diante de pessoas novas, novos processos e ferramentas. Sempre há o que aprender e todo chamado é um chamado para servir.
  • Injustiça. Longe de ser uma posição entre mais valia social e lucro capital, ainda hoje há muita ausência de justiça no mundo dos negócios como um todo. Como cristãos, devemos defender salários justos, equilíbrio e qualidade de vida, relacionamentos coerentes e éticos no trabalho. Além disso, sabemos, por exemplo, que ainda existem ao menos 30 milhões de pessoas escravizadas que trabalham em condições desumanas, países com alto índice de desemprego e refugiados com difícil acesso ao trabalho em muitas nações. Os refugiados, aliás, estão em crescente expansão no Brasil. Existe uma migração do campo missionário da janela 10/40 para o nosso país. E, nesse caso, o trabalho também se apresenta como uma admirável forma de encurtamento estratégico da missão transcultural de Evangelização dentro do nosso país.

José, Daniel, Neemias e Ester foram todos missionários, chamados para influenciar e impactar as suas gerações. Tiveram que lidar e superar todos esses riscos nos seus trabalhos, mas, entenderam que suas atividades eram verdadeiros campos missionários nos quais a missão de Deus se realizava e o caminho para o Messias era preparado. Além disso, em suas épocas, a instituição igreja não existia e, portanto, não exercia influência para os rumos das sociedades. Atualmente, tal instituição existe, mas continua não exercendo um papel fundamental nesse contexto. E não é necessário entender muito de relações internacionais ou história para saber que as organizações que definem o rumo da humanidade pósmoderna são: instituições de ensino, governos e grandes corporações. Precisamos, portanto, de verdadeiros cristãos vocacionados em cada uma dessas áreas: na educação, na política, na economia e negócios. Cristãos, estes, que também são vocacionados para que a missão de Deus na Terra continue. São, portanto, cristãos bivocacionados (trabalho + missão = missionários no campo de trabalho). Recentemente, tenho dito a pessoas próximas que eu nunca tive medo da morte, mas que, de alguns meses para cá, esse temor tem sido presente e constante. Tenho percebido que, quanto mais o tempo passa, aumenta a urgência do trabalho missionário que ainda precisa ser feito e, enquanto muitos planos não são implementados, a missão também não se inicia de forma completa. O Evangelho precisa ser propagado rapidamente em todas as nações (2Ts 3:1). Desta forma, oro para que possamos ser trabalhadores assim como os taxistas, usados como intermediários para levar as pessoas aonde elas precisam chegar: aos pés daquEle que trabalha em todo tempo, desde antes da inauguração do mundo, em favor dos Seus, o Senhor Jesus Cristo.

Paulo Humaitá. Economista formado pela Universidade Estadual de Londrina e pós-graduado em Planejamento Estratégico pela PUC. Estudou Estratégia e Gestão na University of Chicago Booth School of Business e atualmente cursa Postgraduate Studies on Missiology (PSM) no Seminário Teológico Servo de Cristo. Trabalha como Desenvolvedor de Negócios na América Latina pela Novozymes, líder global em biotecnologia. Membro do PEM – Profissionais e Empresários em Missão – órgão da AMTB (Associação de Missões Transculturais Brasileiras) que promove a visão BaM (Business as Mission) e fazedores de tendas. Também tem atuado como consultor de negócios para start-ups BaM. Membro da Igreja Presbiteriana de Pinheiros em São Paulo. Corinthiano e viciado em café, especialmente Starbucks. I

IMPORTANTE

Esse artigo foi inspirado nos seguintes livros, demais materiais e versículos-chave:

  • STOTT, J. Os cristãos e os desafios contemporâneos. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2014.
  • KELLER, T. Como integrar fé e trabalho: nossa profissão a serviço do reino de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2014.
  • TUNEHAG, M.; MCGEE, W.; PLUMMER, J. Lausanne Occasional Paper No. 59: Business as Mission. Pattaya, Tailândia: Lausanne Committee for World Evangelization. Acessível em: http://www.lausanne.org/content/lop/lop-59
  • NOMOTO, C. Vivendo os valores do Reino de Deus na vida profissional. Palestra ministrada no seminário teológico Servo de Cristo em São Paulo. 2014. Acessível em: https://www.youtube.com/watch?v=OBhpmscvmZg
  • Bíblia Sagrada versão Revista e Atualizada no Brasil 2 ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2011.

Gênesis 1:10, 12, 18, 21, 25, 27, 31. – Gênesis 3:17-19

Eclesiastes 2:20, 24 – Eclesiastes 3:22

Isaías 64:4

Mateus 20:1-16

Romanos 8:28

1 Coríntios 10:31

Colossenses 3:17

Efésios 3:20

2 Tessalonicenses 3:1

Livros de: Daniel, Ester, Neemias.

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